Gente frouxa

Por Nuno Ramos

Leia trecho de VERIFIQUE SE O MESMO, de Nuno Ramos

 

Gente frouxa. Fazendo a conta das próprias culpas. Vocês vão deixar isso seguir, a câmera lenta do suplício, o passo a passo da catástrofe, até a coroação final desse palhaço? Sua alma não está sendo vendida ao diabo, Fernando Henrique? Gozado, pois a minha está. E a daqueles que amo. E tenho medo por mim, e por eles. Precisamos de declarações bem claras de condenação à Venezuela antes de assinar manifestos democráticos, Samuel Pessoa, meu primo querido? — mas você ainda não entendeu que a Venezuela é aqui, agora? Hélio Schwartsman, não há como garantir que o cara seja fascista e violento? Estatisticamente, você diz? Alguma experiência comportamentalista? Ou será o poder infinito da transcendência que se infiltrou em seu artigo? Gianotti, o Brasil vai se civilizar com a chegada do “Brasil profundo” ao poder? Você diria o mesmo da Alemanha — que ela se civilizou (depois de assassinar alguns milhares) com a chegada da “Alemanha profunda”, o nazismo? E o glorioso Manual de Redação da Folha, que proíbe chamá-lo de extrema Direita? Seria o quê, então — média Direita? Três quartos de Direita? 

Haddad, tome para si o transe que o rodeia. O diabo está na rua, no meio do redemoinho, e não há tempo. Você tinha três semanas, já perdeu mais de uma. Sim, condene logo a Venezuela, como quer meu primo (ela merece); garanta que não se reelege de modo nenhum, e que na próxima eleição seu candidato é o Ciro Gomes (a ideia é do Marcos Nobre).

Faça o que tiver de fazer, inclusive romper com a Gleisi Hoffmann e com esse narcisismo autovitimizante do seu partido. Ah, e só pra lembrar: Lula de fato está preso (é bom lembrar a direita disso, também).

O mundo vai acabar, jabutis. Marina Silva levou mais de duas semanas para declarar seu voto! É incrível! Batemos palmas? Inauguramos uma estátua de bronze? E Ciro, rodando a Europa? Estar. magoado? Quem sabe um terapeuta? Uma xícara de chá, para iniciar a lenta dança de aproximação para as eleições de 2022, que provavelmente nunca chegarão? Gente sem momento, sem desejo, sem energia. Narcisos pançudos coçando a própria imagem, dizendo “veja bem, veja bem”. Não vejo bem, vejo mal pra caramba, e o medo, o medo daquela ridícula Regina, me tomou. Nós votamos em vocês. Durante décadas. Eleições majoritárias ninguém esquece. E vocês se empanturram nesse festim sinistro de hesitação, de tibieza, de continhas. O pânico que sinto não chega a vocês? Essa voz quebrada, esse tanto de gente chorando? Cadê? Sim, posso ouvir o argumento — o ódio aos políticos é que criou esse monstrinho. Então sejam políticos e não covardes. Defendam os desprotegidos. Pois não é exagero — diante do que vem aí, desprotegidos somos todos, e mais ainda quem é pobre e preto e veado e lésbica e de sexo trocado. Juntem-se. Defendam em bloco, tirem a camisa, chamem para a rua, arrisquem. Criem.

Gente frouxa.

 

Publicado originalmente na Folha de S.Paulo, 23 out. 2018.

 

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Nuno Ramos é artista plástico, compositor e escritor. Venceu duas vezes o Prêmio Portugal-Telecom.


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